quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

Aprendendo mais sobre drogas e HIV com histórias da vida real.

Terça-feira, 02/02

Depois do papelão da noite passada, Lucia estava bem mais calma e fingia que não se lembrava de nada. Tanto melhor para todas nós, que não tínhamos paciência para discutir os sucedidos.

Desta vez, o carro da ONG veio nos apanhar perto das 11h. Como ela é nova por aqui e vamos trabalhar juntas, em um mesmo projeto de prevenção e combate ao HIV/AIDS, fomos conhecer mais centros da ONG, onde as crianças estudam.

Visitamos quatro centros diferentes, inseridos nos vilarejos próximos, onde os pequenos estavam tendo aulas. Em todas as salas nas quais entrávamos, as crianças levantavam e diziam “Namastê, Didi”.

Namastê quer dizer “olá” e Didi significa algo como “irmã mais velha”. Aqui (e eu sempre acho isso muito engraçado), quando as pessoas querem chamar homens mais velhos desconhecidos, como o garçom da cafeteria ou o atendente do mercado, eles chamam de Dáda, que quer dizer “irmão mais velho”.

As crianças pareciam felizes e nós ficamos felizes por vê-las e poder interagir com elas. Mais tarde, voltamos ao centro e esperamos para conhecer um usuário de drogas infectado com o HIV que mora nas redondezas.

Sentamos no escritório improvisado do secretário, que fica na entrada de uma das salas de aula, e algumas professoras, curiosas, se juntaram a nós, deixando as crianças fazendo alguma atividade.

O homem entrou pela porta, vestindo uma regata e uma toalha ao redor da cintura. Tinha a pele morena clara, era muito magro e em sua face, era possível ver claramente as marcas de todos os ossos, apesar da barba espessa. Tinha os olhos escuros e grandes e o olhar sem característica alguma, como se tivesse desistido da vida.

Sentou na cadeira à frente da pequena mesa do secretário e evitou nos encarar. Vidhi (a muito inteligente neta do presidente da ONG, que nos serviria de tradutora), Lucia e eu estávamos sentadas em um banco de madeira ao lado da mesa, o que me deixava em posição para encarar o perfil triste daquele homem.

O secretário disse que poderíamos fazer as perguntas que quiséssemos. Então, resolvi começar pelo básico e perguntei como ele havia sido infectado. O homem olhou para mim e apontou, com o dedo indicador, uma tatuagem preta apagada no antebraço ressecado. Perguntei se foi quando ele fez a tatuagem, mas o secretário disse que não, que o homem quis dizer que foi infectado por meio do uso de drogas injetáveis.

Seguimos fazendo perguntas sobre sua vida com o vírus e descobrimos que ele tem 40 anos, mora com a mãe, é separado, tem um filho e continua sendo usuário de drogas.
Fiz mais questões sobre a assistência médica do governo, e descobri que ele não recebe nenhum tipo de ajuda para tratamento. Perguntei, ainda, se ele entendia as consequências para sua enfermidade ao continuar sendo usuário de drogas. Ele falou algo em híndi e apontou o dedo indicador, como se fosse uma arma, para mim e falou um som estranho, como um “bum”. As professoras, o secretário e Vidhi riram, mas Lucia e eu continuamos sérias.

Vidhi traduziu: ele havia dito que, se eu tivesse uma arma, ele preferia que eu atirasse nele e o matasse do que o obrigasse a parar com as drogas. Fiquei ainda mais assustada por isso soar engraçado às professoras e ao secretário.

Perguntei quais drogas ele usa e ele me disse “brown sugar”. A tradução literal é “açúcar marrom” e eu não sei se temos este tipo de droga no Brasil. Então, ele pôs a mão no bolso e tirou um papelote, que abriu, revelando uma pequena quantidade de pó marrom. Baixou a cabeça em direção ao pequeno conteúdo e as professoras começaram a gritar. Entendi que ele ia aspirar ao pó na nossa frente, ali, onde as crianças também já tentavam prestar atenção do lado de fora da porta aberta.

As professoras expulsaram-no do prédio e a entrevista terminou ali. Eu estava horrorizada e continuei fazendo perguntas sobre assistência médica e educação preventiva sobre o HIV e o uso de drogas. Nada. O governo indiano fecha os olhos e finge que não existem mais de cinco milhões de infectados com o vírus no país e tampouco se importa em educar as crianças sobre o perigo da drogadição. Fica tudo a cargo das ONGs, que não são muitas e, apesar de fazerem sua parte, não têm condições de trabalhar em ampla escala.

Não queria ofender a cultura de ninguém, então fiquei quieta. Mas, me pergunto, até quando os tabus de determinadas sociedades seguirão sendo empecilhos para a discussão aberta de assuntos importantes como estes? Por que o governo daqui segue com este pacto tácito de que não há problema algum? Para não ofender a conservadora sociedade indiana? Para não ter de falar sobre sexo e drogas e fingir que o problema ainda não chegou aqui, devido aos ditos “bons” e antigos costumes deste povo?

Assistindo à minha indignação e à batalha interna que travava, silenciosamente, contra a minha vontade de continuar perguntando o turbilhão de questões que vinham à minha mente, o secretário da ONG se levantou e disse para irmos com ele. Entramos no carro e Lucia e eu retomamos uma inflamada discussão sobre o que acabávamos de presenciar.

Seguimos até a fazenda que a ONG mantém para alimentar as crianças e empregar pessoas pobres do vilarejo. Chegando ali, entendi que o assunto estava encerrado por aquele dia e que deveríamos somente apreciar o bom trabalho da ONG.

Em silêncio, voltamos ao campus, no carro da ONG. Paramos em frente ao restaurante em que havíamos estado na noite passada, o Little Sisters, para esperar o trem passar à frente. O secretário apontou para o local e disse que uma parte do staff da ONG esteve reunida ali para jantar e nos viu de longe. Olhei para Lucia, que baixou a cabeça e corou. Afirmei com a cabeça e, envergonhada, pela atitude da minha colega, também baixei a cabeça e continuei em silêncio.

Paramos no campus para ir à biblioteca e Lucia finalmente me perguntou o que havia feito na noite passada, depois de aspirar ao açúcar. Falei tudo, menos a constrangedora parte em que acordei para ajudá-la a chegar até o banheiro. Ela não parecia mais envergonhada e deu uma sonora risada. Achou muito engraçado e acrescentou “espero que meu namorado não descubra uma coisa destas”. Fiquei em silêncio, pois não estava a fim de discutir moral àquela hora.

Fomos à biblioteca para esperar o tempo passar, pois teríamos uma festinha com o pessoal do Knuts!, aqueles para os quais demos uma entrevista há algumas noites. Pois bem, a entrevista foi um sucesso e eles tiveram o maior número de acessos de sua história e nos chamaram para oferecer-nos uma festa e comemorar.

Como sempre, a festa era no telhado de um dos prédios do campus, escondida dos guardas, completamente no escuro, e para chegar lá, tínhamos que subir uma daquelas escadas bambas.

Eles haviam comprado batata frita, refrigerante e rum. Eu comi um pouco de batata frita (mentira, eu comi MUITA batata frita) e tomei um refrigerante, mas não conseguia socializar muito, pois ainda estava muito reflexiva sobre o que havia acontecido durante a tarde. Sentei sozinha em um canto, olhando para o campus lá embaixo e segui pensando. Meu momento intimista era interrompido, algumas vezes, apenas pelas risadas altas e gritarias da Lucia.

Virei para trás e, desta vez, ela estava bebendo o rum direto da garrafa. Já eram onze horas quando avisei que ia embora. Fui seguida pela Sandra, que trouxe uma relutante Lucia consigo.

O gentil Himen conseguiu um táxi e nos acompanhou até o flat. Fiquei um pouco na internet, enquanto elas se preparavam para dormir. Em seguida, esvaziei a minha mente de todos os acontecidos nesta semana conturbada e peguei no sono.

Quarta-feira, 03/01

Na terça-feira, havíamos combinado com o secretário da ONG que ele passaria para nos buscar no flat perto do meio-dia. Esperamos até a uma da tarde e resolvi ligar para ele, que avisou, mais uma vez, que não poderia ir nos buscar, o que significava mais um dia de ócio criativo para nós.

Sandra e eu preparamos um miojo, almoçamos e seguimos para o campus, pois Lucia queria almoçar por lá. Na cafeteria, encontramos Rahul, que me deu folhas de ofício com os dados de mais de 400 pessoas que assistiram às minhas apresentações e pediu-me para começar a organizar uma tabela e um relatório para entregar no final do meu projeto.

Odeio ter que fazer vezes de secretária, mas como é meu projeto, peguei os papéis e fui à biblioteca responder e-mails, scraps e começar a trabalhar.

Na entrada da biblioteca, um menino me parou e perguntou-me se eu era “a brasileira da AIESEC”. Disse que sim, e ele sorriu aliviado. Contou que estava me procurando por toda a parte, pois o diretor indiano Shekhar Kapur, aquele que havia dado uma palestra no campus na sexta-feira, gostaria de escutar o que eu tinha para dizer.

Fiquei chocada, porque, naquele dia, eu estava bastante doente e tentei iniciar uma conversa com uma pergunta que foi abafada pela multidão de indianos gritando e tirando fotos. O menino disse que ele achou a questão que levantei bastante interessante e que se eu tivesse interesse em continuar a discutir, poderia mandar um e-mail e ele tentaria me responder.

Ao invés de começar meu trabalho, então, comecei a preparar uma série de perguntas para enviar ao cinegrafista e tentar forçar uma entrevista. O que, exatamente, eu vou fazer com esta entrevista, eu não sei, mas, primeiro, vamos ver se ele responde!

Às 18h, tínhamos uma apresentação sobre a AIESEC, na qual falaríamos de nossos intercâmbios para os recém-recrutados membros. Como sempre, a apresentação começou somente às 18h45min e nós falamos o mais rápido possível para poder ir embora.

Paramos no Tech Market para comprar algumas frutas e seguimos para o flat. Sandra e eu jantamos sopa de legumes (de saquinho, óbvio!) com pão e suco. Comi algumas frutas e, quando as minhas duas colegas terminaram de ocupar a internet, peguei o aparelho USB e fiquei até as três horas da manhã matando as saudades dos amigos por meio de suas novas fotos no Orkut e sabendo das novidades santa-marienses, pela a minha bem-informada irmã Vivian.

6 comentários:

  1. Olá Vanessa! Muito massa os seus relatos sobre a India, são essas experiencias (tirando a da Eslovaca loca rsrs) que nos fazem abrir a mente e perceber o que está em volta...é isso que provoca mudança!

    Meu nome é Marcelinho, acho que nao nos conhecemos pessoalmente no Brasil. Assim como vc, estou fazendo meu intercambio na Costa Rica. Passarei a acompanhar seu blog. Bjs e sucesso por ai!

    www.aquiespuravida.blogspot.com

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  2. OI Vanessa! Tenho acompanhado quase que diariamente o teu blog e tenho indicado tb para alguns amigos acompanharem. Muito interessante mesmo! E essa loca, credo!! Sucesso ai pra vc, e nao deixa de escrever no blog, ok! Rosana

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  3. Vanessa,

    O teu texto consegue conciliar uma cuidadosa descrição sobre o que se passa nessa região da Índia com uma análise pessoal bem estruturada. Isso requer maturidade intelectual, e é possível que as tuas experiências aí estejam te favorecendo nesse aspecto.

    Parabéns!
    Um grande abraço.

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  4. Nossa,que interessante tudo isso!A tua experiência parece estar sendo muuuuito útil e engrandecedora!A minha tá indo tão devagar...
    Muito boa a descrição do indiano,tu escreve super bem :D
    bjo e boa sorteee!

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  5. Sigo te lendo. Excelentes os relatos. Bom seria que conseguisses colocar mais fotos.
    O sul do Brasil está sendo assolado por temperaturas de 42...43...44 graus...uma coisa chocante !
    Mas nada que afastassem 30.000 pessoas do show da BEYONCE aqui em Floripa, a apenas 500 metros da minha casa. Botei filme sobre isso nomeu blog : www.professorpizarro.blogspot.com
    Pretendes voltar quando ?
    Te adoro.
    Beijão.

    Pizarro

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  6. Adorei a entrevista dos caras contigo, principalmente das respostas às perguntas sobre festas e piás de lá e do Brasil/México.

    Fiquei um pouco constrangido pelo fato de tu ter comparado o programa deles ao nosso, mas tá beleza.

    Tu foi um pouco sarcástica demais em algumas respostas... Massa!

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